Acabei a Ronda da Noite da Agustina. Não leio rápido e a Agustina leio devagar. Volto para trás, às vezes dois ou três parágrafos, tenho que ir ao dicionário, rebobino algumas páginas ou abrando quando me chega o cheiro dos malabarismos que ela gosta de fazer, palavras num voo bem coordenado, teatrinho que os fantoches das personagens encenam para aludir a uma coisa muito maior. Comecei o livro do Herberto Helder que a PIDE proibiu em 1968, Apresentação de Rosto. Li um capítulo, tanto Herberto.

Fomos ao apartamento onde os meus avós moravam, ver a quem dá jeito isto e aquilo. Encaixotar o resto das coisas que estavam na vida do meu avô. Quase não chorámos. Pode também ser que, como eu, tenhamos todos conseguir fugir para a divisão mais próxima assim que o olho tremelicava. Trouxe um quadro com umas flores muito van goghianas emoldurado numa pintura velha. É quase kitsch mas acho que fica bem na sala. Trouxe a máquina de escrever do meu avô. É quase hipster mas acho que vou ainda tentar escrever uns poemas com ela. Trouxe duas caixas de livros. É quase hoarding mas a alguns deles ainda chegarei.

Dão muito trabalho agora, roem tudo, mas depois fazem tanta companhia. Trouxemos para casa um dos cachorros da ninhada que nasceu em casa dos meus pais. Chama-se Dalí. É bom nome pois, acaba em i, isso resulta bem com os cães. Vai mijando o chão e roendo a coberta do sofá. Não sei em que sonham os cães mas nesse reino imagino que não entre o peculiar surrealista que lhe deu o nome. Uma snobeirazinha, para que não fosse um nome como os outros, uma snobeira inofensiva. A cada hora e meia descemo-lo pela trela e circunda o prédio. Corre às pombas, aspira cada pedra da calçada pelo focinho, arranca tufos de terra quando me distraio e depois morde a trela em protesto. Gosta dos outros humanos e não deve ainda ter decidido se gosta da gata.

Não lhe dissemos ainda sobre o vírus.

20/07/2020