Não escrevo há quinze dias. Muitas vezes tomo como nota uma ideia ou uma frase e o meu cérebro mal treinado contenta-se com o esfregar do resto de pó de dopamina nas gengivas.
Estamos a sair de casa mais vezes e a fazer coisas da normalidade antiga mas sobre isso o que mais se ouve é que se desconfinou muito mal. Lisboa tem a doença a avançar mais depressa, nos becos dos bairros pobres e nas frinchas que ainda formam quando sem ter hipóteses de amontoam nas carruagens. É com muita pena que todos os que estão deste lado a informamos de que se não for trabalhar lhe cairá em cima uma miséria tal que nem pessoa nos vai parecer mais. Mas olhe que ainda fica doente está-me a ouvir? Isto não é culpa para nós, devia ter estudado ou nascido outra coisa. Considere-se avisada. Tantos anos a aprimorar este maquinismo de caçar animais selvagens e colectar plantas silvestres.
Eu já não confundo tanto os dias. Plantei outra vez coisas pela semana fora e consigo distinguir uma rotina mais simples e quase simpática. O tempo a passar e os duzentos quilómetros até Lisboa diluem o medo. Desconfina-se pior porque se junta muita água nesta solução de medo. Alguns fazem quase homeopatia. Devia ler a Instalação do Medo do Rui Zink sempre que me irrito com a máscara e a tiro momentaneamente para dizer uma palavra com a dicção que se me ouvia ainda há meses. Devia temer aqueles homens sinistros a bater à minha porta. Já não me lembro se traziam algo para a doença e para o seu contágio.
O barco em que no principio estávamos todos deve ter ido contra um iceberg gigantesco. O baque abanou só o porão mas aí mandou mesmo tudo abaixo. Agora cada um ondula em cima ora de belos botes amarelos ora do escombro que calhou em lhe acertar no naufrágio. Borda fora tanto foram pessoas como países inteiros. Já se cheira a putrefacção que a crise leva de rastos pelo chão. Novamente o medo, todo mal instalado. Venham para aqui que nós é que gerimos bem isto da pandemia! Para esse país aí nem pensar, não vão que eles não sabem o que fazem. Não testam, não investem, não dizem quem morre, não dão máscaras. O nosso santo turismo, padroeiro de uma fatia tão doiradinha do produto interno bruto. Venham todos para aqui se fazem favor! Como? Sim, claro: venham todos os que estiverem saudáveis há pelo menos duas semanas claro. E quando voltarem digam a todos como nas nossas praias a extensão do areal tanto ajuda ao distanciamento social.
Num destes dias também fui à praia, aproveitar que já cá estou. Fui só caminhar durante muito tempo. A areia ia-me tentando prender os pés, o salitre amarrando-se na ponta dos cabelos. Fui conversando e caminhando, não vendo o fundo às dunas, não vendo o fundo ao mar. Fazem muito bem ir vir de longe para aqui.
30/06/2020