Primeiro a crise sanitária, depois a crise económica. Desde que se fecharam as portas que se repete o mantra e agora o estalido das fechaduras indicia a segunda parte. Certo é tudo ser uma crise. Tenho trinta e um anos e vou para a segunda. Do que ouvi do tempo dos meus pais esta frequência não é muito abonatória. Da última vez ou não chegou com esta pompa ou eu não estava tão atento. Pelo que oiço nos painéis de comentadores ela estará para chegar e com balanço que chegue para arrombar qualquer que seja a barricada que improvisemos. A economia revelou-se um bicho caprichoso. Poucos dias hibernada bastam para que as vísceras definhem até nada funcionar. Para nós o turismo era um órgão importante. Um pulmão ou um fígado talvez. Não sei nem de economia nem de anatomia está visto, mas é muito importante, está aí a ideia. Parou o dinheiro de subir a escada que começa nas bicas atiradas sem aprumo para as mesa plásticas e roídas do Café Central e termina com aristocraticamente bem servidos banquetes em palacetes campestres ou hotéis com cheiro a maresia. Do mais educado maître d'hôtel ao proprietário do restaurante que julga haver só um tipo de faca, todos se ficaram pela imitação do típico bartender do cinema ou televisão que nada faz senão polir o mesmo copo a noite inteira.

Agora já há quem volte a erguer o braço para mandar vir a tal bica. Chávena escaldada se faz favor, três quartos, sem açúcar mas traga a colher na mesma. Tanto requisito para quem ficou tanto tempo sem beber um café. No salão grande novamente se deram ordens aos serviçais para polir as pratas e fazer mesas com arranjos. Refeições de vários pratos com os sabores devidamente cortados. Cada petrecho do centímetro certo da mesa. Já se pode tudo isto porque os hospitais não encheram e as pessoas não morreram aos milhares como em outros sítios. Lá vem ela. A outra crise. Como o vírus veio numa vaga impressionante que parecia não somar ao seu critério qualquer detalhe classista, tapou-se tudo com um panal esburacado em que alguém agrafou a palavra igualdade numa borda. No destapar vai-se ver a bodega de cobertura que a coisa providenciou.

Foi hoje a missa do sétimo dia do meu avô. Lugares a dois metros de distância e orações enroladas nas máscaras. Antes da comunhão o padre também tapou a cara e o sacristão esguichou-lhe desinfectante para as mãos. Mordisca-me já o início de saudade do meu avô. Há uns dias fomos deixá-lo no cemitério da Conchada. Eu sabia o que era um cemitério, tinha ido a muitos funerais, visitado campas, até deixado flores. Agora há no mundo um sítio cujo chão soterra uma caixa de madeira que contém o corpo do meu avô. Só agora sei o que é um cemitério.

16/06/2020