Ontem o meu avô morreu. O tumor que há três anos lhe atazanava os pulmões lá levou a melhor. Seguiu a combinação tácita que julgamos orquestrada com a morte ao ponto de achar natural o saltitar que faz de boca em boca: a ordem natural das coisas. O luto da minha avó também fará parte da ordem natural das coisas. Atrás da máscara chora baixinho, Sinto um vazio. Pois é avó. Por piedade finjo que a entendo mas desse vazio não sei nada. Só lhe espreito a luz esgotar-se para o que adivinho profundíssimo. Mas sei as coisas que são minhas. Sei a tristeza de saber o mundo novo de coisas que o meu querido avô já não verá. Se lhe não ouvir mais a palma que antecedia o abraço primordial do dia ou de me anunciar como Dom Pedro. É frágil qualquer começo de enunciação das coisas que eram o meu avô. É patético o esforço de lhe honrar nem que seja um dia com alguma fábula que eu só saiba contar mal. Não quis esperar o dia nem aceitar as marcas do tempo que vem acelerando desde que a última infância se esgotou. Os meus avós foram sempre muito novos ainda, mais do que os avós dos outros, até lá ainda há tempo para muito. Agora o meu avô está morto. Não sei dizer mais nada. Não sou escritor como foi ele avô. E este malandro do vírus que não me deixou estar com ele. A minha avó vai denunciando a injustiça. Quando alguém entra na sala as lágrimas saltam da jaula quebradiça que as segura. Recomendam força, coragem e fé, sempre numa dosagem avultada. Nós não arredamos muito o pé. Fomos sempre muito amigos. Cinquenta e nove anos juntos meu filho. Espreitamos todos esse vazio abissal, nada de novo tendo para ver.

Há coisa de um ano e meio visitei os meus avós e escrevi este poema:

 A avó diz ter muitas dores nos braços
 O avô não diz nada mas percebe-se que
 as pernas lhe mortificam todas as horas
 e a tosse agonizante relembra a doença
 É dos tratamentos
 das quimioterapias
 de ainda outras doenças antigas
 dos medicamentos modernos
 das reformas
 das idades
 até das velhices
 O avô deita-se com muita tosse
 diz que depois acaba por passar
 mais ou menos meia hora
 A avó atrasa-se com uma novela nova
 depois diz que não vai logo
 porque tem muita pena do avô
 Ofereço o desgosto visível
 Ofereço um abraço
 boa noite avó avô
 agradecem comovidos
 De manhã brincam os dois trocando um
 sorriso juvenil enchendo de frescura a
 cozinha onde preparamos café
 A saudade prepara uma emboscada ignóbil
 mas terá ainda que esperar
 agora estou com os meus avós

Adeus avô.

10/06/2020