Ontem o dia esteve com a temperatura que mais gosto. Não uso graus, mede-se assim: tem que, quando a noite baixar toda, estar o ar morno para se passear de calção e manga curta, um calor que não abafe as falas, que não faça transpirar, que deixe dormir despido, que peça com subtileza o refresco de uma cerveja ou de um gelado.

Ontem estava uma noite dessas e fomos passear. Decidimos enveredar pelo bairro muito caro que há perto do meu prédio. É um sítio-rótulo, um dos vários da cidade, mas como não passou muito tempo desde a construção dos edifícios ainda não há consenso sobre o rótulo a aplicar. Escolhe-se muitas vezes o verbo antes do resto. De qualquer maneira a deliberação deve ser concluída daqui a alguns anos e julgo que se tire algo da tômbola que agora gira com betos, doutores e novos ricos aos trambolhões.

A colina que esconde os prédios e os seus extensos acabamentos de pedra castanha sobe-se bem, depois caminhámos pelas ruas desertas.

 - Já viste que há tantas janelas com as luzes apagadas?

Janelões, paredes de vidro que deixam entrar a luz toda que há na rua.

 - Será que não estão em casa? Numa altura destas? Devem ser médicos e estão a trabalhar coitados. Mas tantos assim? Podem estar em casa mas estão de luz apagada, vai ver-se e é assim mesmo que se chega a rico. Às tantas não se venderam ainda estas casas todas. Não há assim tantos ricos afinal. Pode ser disso. Ou podem ter outra casa. No interior ou na praia. Podem estar para lá. Se calhar os ricos que há são ainda mais ricos do que pensamos.

No topo da rua vira-se na direcção dos Olivais e o luxo das construções dissolve-se em três ou quatro quintais. Há por ali moradias que podiam ser do lugar onde cresci. Um portãozinho com o trinco muito cansado, erva tentando furar o empedrado, as linhas muito simplistas da casa com o caiado sujo de manchas velhas.

 - Isto é tão sossegado, aqui no meio da cidade. Olha aquele gato na varanda. Está muito alto, credo!

Casas novas e velhas, ricas e pobres, luminosas e apagadas, desabitadas e com gente a mais, compradas ou arrendadas. Casas como pessoas. Clichés muito urbanos. Ainda passámos pela casa onde viveu o Miguel Torga e cinco minutos depois voltámos à nossa.

28/05/2020