Estava a ouvir os pingos grossos da chuva a bater no vidro da janela e a pensar na descarada pista que isso daria para se fazer o caso de que fora desta casa ainda há coisas a acontecer como antes.

Já me tinha apercebido da repetição inexorável em que acabam por cair todos os meus dias mas, agora que vou chegando a uma sucessão mais comprida, começo a notar feitios iguais a semanas distintas e não tardará muito até os meses se contaminarem desta peste aborrecida. Que dano se fará a uma vida ao torna-la toda muito adivinhável? Viveria aqui por dezenas de anos apanhando as mercearias à porta, ligando o esquentador antes do banho, comendo o mesmo pequeno-almoço à mesma hora, girando a mesma cadeira de escritório pelos arrabaldes da paciência que for sobrando, ouvindo os mesmos discos, cozinhando os mesmos pratos. O mistério é realmente este fosso de que só vejo o negro cavalgando para o seu fundo e o oco som do que para lá acaba por rolar, sem ponte ainda pronta nem para as mais corajosas travessias, separando o interior das minhas normais paredes e o resto do que antes, assim o quisesse, podia livremente fazer.

Ontem saí de casa para um passeio. Eu e a Mariana. Mascarados. Fazendo a macaquice habitual para abrir a porta do prédio com o pé. De onde começa o declive para esse fosso apanhámos balanço e tentámos um salto. O sadismo maior está na maneira que ele tem de nos fazer regressar ao ponto de partida, incólumes, fazendo contas à loucura que poderá ter sido a tentativa. Não incita nem reprime uma nova tentativa, escondendo mal um regozijante semblante perante os falhanços que vamos empilhando. Descemos a Celas e depois à Sereia. A meio juntaram-se os pais da Mariana. O novo juntaram-se, sem rostos e sem toques. A máscara vai agarrada ao rosto mas tapa todo o corpo. Vai ali outro amedrontado como eu e agora nunca nos vamos conhecer, nem que seja ele um irmão meu. Trocas de passeio sucessivas porque não se pode arriscar nada. O outro é tinhoso. A máscara aquece as bochechas, embacia as lentes dos óculos a cada respiração e vai cavando a pele que está atrás das orelhas. Preto foi afinal uma péssima escolha de cor. O resto da cidade vai calmamente vendo o dia a desfilar, absorvendo o calor novo de Maio, ignorando as lamúrias partilhadas entre arfadas.

Subimos de novo e vou pensando com força em algo de verdadeiramente novo para fazer.

16/05/2020