A bicha do chuveiro partiu-se na parte onde se atarraxava a cabeça. Esta casa não é minha, no fim do mês entrego algum dinheiro aos donos e eles aceitam que eu e as minhas coisas cá fiquemos por mais um período. É uma passagem, antevejo que um dia a falta que faz uma varanda sobrevenha e seja preciso empacotar tudo outra vez. Há portanto, poisada em todas as coisas que estão dentro do apartamento, uma segregação latente entre as coisas que se sabem minhas e as que já ocupavam a casa antes de para aqui me ter mudado. Imagino os dois grupos improperiando-se sobre um valor que, perante a posse que lhes detenho, julguem ora precioso ora abjecto.

Não sei o grau de militância da bicha do chuveiro mas como ela se estragou ficará fora desse combate. Foi há quase uma semana e, como não desistimos ainda do subestimado ritual da higiene pessoal em tempos de isolamento, têm acontecido interessantes combates com a escaldante e escorregadiça imitação de bicha-de-rabear que a coisa avariada executa no fundo da banheira.

Fui ontem ver os meus pais tios e avós e trocar também a peça com estrago. O meu tio tem uma loja espantosa em que há destas coisas. Foi lá que ocupei alguns verões enquanto me torcia para deixar a infância. Aprendi truques para rapidamente fazer trocos, os tamanhos dos vários pregos, tipos de diluente e a varrer o chão condignamente. Para aqui voltarei noutro dia, para já a peça do chuveiro. Teve ela que ser substituída para que saísse de casa e fosse ver a minha família pela primeira vez em muitos dias. Comigo estão confinadas mais coisas que só mostram a cabecita a espaços, tentando surpreender-me quando me preparo para aceitar o que agora me mandam fazer. Lá fui. A Mariana veio comigo. Lá fomos. O carro soluçou à primeira ignição mas no segundo fôlego ficou lesto para arrancar e lá fomos. Tinha-se posto uma tarde das que vêm no meio da primavera, muito confiantes num rápido e belo cavalo, dizendo que o exército do calor se prepara após a colina que é Abril e avisando sobre a necessidade de se preparar a pele para finalmente andar ao léu sem medo da emboscada do calafrio.

A Maria é uma cadela epagneul breton que acompanha o meu pai em caçadas. Pariu há dias sete cachorros, sete rolinhos mosqueados que se vão amontoando uns nos outros tacteando por comida ou calor. São tudo sobre o que o meu pai consegue conversar por estes dias e como a expressão que traz na cara é uma barragem incapaz para a torrente de ternura que o parto lhe causou, todos nós somos alegremente salpicados. Ficámos dispostos numa grelha tosca parecendo pestíferos, enquanto os cãezinhos lutavam para segurar vírus e quarentenas longe da conversa. Lá para o final não resistimos, mas há esperança. Daqui por alguns dias os pequenos abrirão os olhos e quando em algumas semanas começarem num trote mal-enjorcado serão fortes quanto baste para vencer por completo qualquer conversação.

Acabei de ler A Peste. Por quantas cidades correrá agora o querido absurdo de Camus? Regressarei agora a Agustina.

03/05/2020