Amanhã vou viver o mesmíssimo dia que hoje me aconteceu. É a edição de bolso e muito má traduzida do eterno retorno. Mas eu sou um fraco estóico, não caio pelo amor a um destino mesmo que se dispa provocador perante mim. Vão-me acontecendo as coisas e com elas me vou irritando, rindo, chorando e o mais que outras emoções no caso queiram sobrevir. Piedosos, os estóicos dirão que também eles sentem as emoções, restringindo sim a acção das suas poderosas mentes ao que sabem dentro da circunferência do que podem controlar. Dirão não, diriam, se existissem. Bando de ilhas. Um dia serei também como esses antigos antigos e perderei tudo por fim numa baça e vazia vitória.

Cá estou sem me faltar nada. Click click adicionar ao carrinho e daqui a uns dias já me trazem mercearias e vinhos e um jogo para o computador e uma varinha mágica que muito preciso para sopas e se começasse a pintar agora que há tanto tempo tintas telas e um cavalete e porque não este puzzle e abacates bananas manteiga de amendoim bebida vegetal e uma máquina de café que não bebo uma bica há tanto tempo que na pele já vou sentindo a portugalidade metendo-se com ares vagos e indecisos.

Sou Sísifo como sou estóico. Não posso livrar-me à imagem cegante que faz a luz do fim do dia, alcançando a minha bola de mármore gigante perto do cume da montanha, mas tenho muita ajuda no carrego. A cada dia um passeio pelo declive, quase que apreciando a vista, quase esquecendo de que tudo rolará em sedimentos quando eu e ele estivermos tão perto de cumprir esse desiderato estéril de empurrar o fardo pelo derradeiro centímetro. Sofro como ele por tão vã ser a subida mas não será o peso da tarefa a condenação real desse mortal que em tanto logro fez cair os deuses? Não estarei eu, como quantos na eternidade, entediado?

Fala-se mais amiúde do regresso à normalidade e ainda de uma nova-normalidade. Não entendo ainda com que se relacionam os engenhos da novidade e da normalidade. Será a normalidade nova face ao antes ou ao agora. Talvez sejam necessários muitos normais para uma novidade tão entrelaçada. Há histórias de placas de acrílico entaipando quem visita os restaurantes, salas de cinemas e estádios de futebol com cadeiras vazias fazendo distância entre espectadores, praias com fiscais que garantam que pelo areal os veraneantes não fiquem num salpico demasiado apertado. Normalidade absolutamente empestada de novidade. Eventualmente tudo rolará para o que foi e inevitavelmente recomeçaremos.

27/04/2020