Não ocorreu ainda um dia desde que me fechei em casa a que no final o conseguisse achar fantástico. A norma tem sido suficiente para atender diariamente o telefone à minha mãe e não precisar de mentir muito ao dizer que sim, está tudo bem, tudo na mesma. Mesmo naqueles em que tudo acontece debaixo desse forte quase infantil de almofadas a que não desisti ainda de chamar normalidade, chove sempre uma lembrança qualquer do terror com armadura que ainda agora chegou e monta já cerco ao redor de qualquer espécie de intenção que venha à lembrança. Hoje foi pior, um dia mau. Claro que antes também aconteciam os dias maus, e claro que agora mais fácil fica ainda o exercício em que numa raquetada se enxota o nosso patético desassossego por se recordar a multidão a sofrer com todas as coisas do piorio. Mas ainda assim hoje foi um dia mau, não se pode pensar no mal todo, de toda a gente, em todos o tempo. Por vezes só nos cabe o nosso, ficando num cantinho a esculpir uma demorada e conveniente mania de grandeza. Não passará de um egoísmo jactante? Não interessa. Já disse muitas vezes que foi um dia mau e isso devia chegar. Agora para o que queria dizer. No dia apareceram três momentos bons.

Primeiro. Este talvez largue aquele travo de snobismo instantâneo, que vem em pacotinhos e é só juntar água, muito popular hoje em dia, mas não me interessa. A meio da tarde subiu um desconforto costas acima e a luz do ecrã tornou-se excessiva. Decidi fazer aquilo que agora tenho a certeza ser a pausa perfeita: fazer soar a Nona de Beethoven e pela sua duração ficar só estendido no sofá. Ainda li durante os dois primeiros movimentos, no terceiro começou o livro a cabecear cima e baixo e os solistas já não me viram acordado. Sei do crime mas relembro a maldade do dia. A sinfonia dura uma hora e pouco, quando acaba ainda se vai a tempo de tratar de trabalhos e emails e outras merdas. Ponho-me a imaginar o batalhão de engravatados a esgadanhar, soprar, bater nos instrumentos enquanto placidamente vão saltitando entre a partitura e os solavancos do maestro. De todos eles emerge a maravilha, vigorosa e confiante, alheia ao remorso que um parto tão complexo lhe devia causar. Li que Beethoven estava quase surdo quando a escreveu. Seca-me a boca, mas têm essas implicações que ficar para outra altura.

Segundo. Já não sei por que caminho fomos mas eu e a Mariana, enquanto o forno cozinhava o jantar, acabámos a discutir que músicas nos serviria de entrada no copo-d’água de um potencial casamento em que calhassem para noivos eu e ela. Como é bem capaz que calhe, estas conversas trazem de arrasto aquela vertigenzinha da realidade mas no mundo está uma pandemia a troçar-nos as doutrinas todas portanto permitimo-nos passar por cima de escrúpulos tão miúdos. Decidimos por uma música muito pindérica. Rimos um pouco, até lá ainda nos vamos acobardar e escolher uma coisa que arraste mais respeito. Faltava porém a valsa. Disse à Mariana que não fazia mal ela não saber dançar muito bem e aproveitei para exagerar a minha competência. Nessa altura da festa do casamento nunca vi painel de júris a formar-se para arbitrar a destreza do casal. Estaremos seguros. Escolhi uma - Strauss, não sei muito mais - e pela sala fomos ensaiando: passo grande, eu guio Mariana, pisa pisa e abre, ouve a música, pisa pisa e abre, isso, desculpa agora fui eu. Dançar mal serve quase o mesmo que dançar bem, é decerto uma arte. Quando chegar a altura talvez sejam preciso um par de aulas.

Terceiro. Fiz uma mousse e acho que vai ficar boa. A expectativa de amanhã abocanhar um bom pedaço daquela deliciosa nuvem achocolatada e no lugar de um simples mastigar só agitar a língua deixando que tudo escape pelos cantos da boca enquanto capturo cada molécula de sabor já me ajuda a ir dormir um pouco mais animado. Peço desculpa mas o açúcar nunca me dá para vírgulas e hoje reivindico algum desconto.

23/04/2020