Daqui a alguns dias é o 25 de Abril e as pessoas parecem irritadas com as celebrações que agendaram este ano. Por causa do vírus colocou-se o país dentro de um estado de emergência, pretexto algo rasca mas suficiente para se fazer pinchar um ódio rançoso entre esses fascistas que pela liberdade só têm detestação e os parasitas chupadores das tetas de um estado mal agigantado.
Antes do 25 de Abril havia rapazes a nascer nas aldeias dos fundíssimos interiores de Portugal e esses rapazes desde a garotice tinham entretido as horas todas de sol com pouca coisa a juntar-se aos ásperos hábitos e segredos da lavoira. Pois, antes do 25 de Abril, em dias que mal se anunciavam, alguns desses rapazes faziam muitas coisas pela mais virginal primeira vez: seguir veloz pelo sentido correcto da linha de comboio; calcar o padrão branco e preto de uma cidade; sumir-se na austeridade de outro homem; adormecer embalado na maré mais gentil do oceano; saber que as pessoas vêm em mais cores do que chamavam a cor de pele; redigir uma carta enquanto o papel ensopa com lágrimas; transpirar a humidade nocturna da selva; morrer.
Haverá o que celebrar mas a merda do vírus cobre até as matérias elementares com uma sórdida demão de complexidade. Como 1974 aconteceu há tanto tempo os heróis que restam estão agora muito velhos e imagine-se a ignomínia desta coisa miserável fazer o que, nessa madrugada que a Sophia esperava, o Junqueira dos Reis não fora capaz mesmo que ao bofetão tenha ordenado fogo à coluna do capitão Maia.
Então fico assim sem saber, sem que nunca chegue a uma certeza ‘sobre quem tem toda a razão. Do que percebo um par de convictos murros na mesa fazem por agora melhor as vezes das empoeiradas molduras que seguram os diplomas universitários. Convém para colar a solenidade subir a um pedestalzinho revestido de uma moral o mais irrefutável possível. O ideal é que não se lhe note a altura mas que de cima dele se possa confortavelmente cuspir nos outros.
Fico fechado em casa assim sem saber, lutando por cada pífia conclusão, querendo muito que viva a liberdade.
21/04/2020