Hoje faz cinquenta dias desde que me fechei em casa com medo de apanhar um vírus muito perigoso que para aí anda. Saí um par de vezes para coisas que tinham mesmo que ser. No resto do tempo aqui permaneci, sala quarto cozinha e casa de banho, corredor estreito com uma escolha péssima de amarelo, torneira do bidé mal vedada, uma fita do estore encravada, pouca claridade a não ser quando o sol escapa no ângulo certo ao muro que afronta as janelas. Mas não tem humidade e o prédio é calmo, está aqui perto de uma zona rica de Coimbra, piorar não fará. A Mariana está aqui comigo. A gata da Mariana, a Tsuki, também.

Hoje comecei a ler a Peste do Camus. Dizem que por agora é boa leitura, que tem das coisas notáveis a que as pessoas se prestam em situações parecidas com esta de agora que, numa minha e apressada opinião, são estranhíssimas. A contracapa refere uma cidade em quarentena e uma peste que tem o primeiro sinal num rato morto. A cidade é porém na Argélia. Nem da Argélia nem de pestes posso sequer ajeitar falar com propriedade, mas o homem é o homem, a mulher a mulher e, acima ainda disso, Camus o Camus.

Hoje vi na cena final de um filme um homem a beijar uma mulher no canto da boca. Não era na boca, era no canto, na confluência do lábio inferior e do lábio superior, a parte que mais dói quando os lábios se crispam de frio, de onde parte o sorriso nas expedições irrazoavelmente optimistas que emprega até à orelha, aí mesmo. Que relíquia de beijo. Deviam-se distribuir mais destes. Imagino que vencida a boca o beijador a queira sempre agora tomar cabalmente, selar tudo numa assoalhada hermética mas espaçosa, salão de festa com um frontispício envidraçado onde a luz surge na primeira hora e permanece ociosamente o dia todo. Um pouco como devia ser a sala do meu apartamento. O beijo que vi no filme é de recordação e também dará o que ganhar. O meio do caminho, um pouco de agora em que tanto as línguas se já enrodilharam, um pouco de antes em que o desejo era ainda árido. Um pouco de tudo, um pouco de nada. De sonho, de sonho.

Hoje lembrei-me que se o vírus chegar aos pulmões do meu avô ele vai morrer e eu não me lembro muito bem do último abraço que lhe dei. Da última vez que nos vimos dei-lhe um bom abraço. Os abraços que lhe dou são sempre bons mas esse sei-o pouco digno de ser o último. Agora tudo isto e foi hoje no que pensei. A morte dos velhos faz-nos egoístas. Dos velhos doentes ainda pior. Mas o que haverá a fazer? Não quero ser um neto mau, filho mau, pessoa má. Estou aqui fechado e gostava de ser um herói mas tudo indica que para se ser herói tem que se fazer o que já estou a fazer há cinquenta dias. Justamente. No futuro estarei a olhar para estes dias e nestes dias olho esse futuro, uma autocomiseração adivinha, algo ridícula. Não quero ser a pessoa que é má e tive sempre o defeito de colocar a fé da virtude no que é excepcional.

Hoje decidi escrever. Estou há muito tempo fechado em minha casa.

19/04/2020